domingo, 16 de setembro de 2007

Artigo


LIGAÇÕES PERIGOSAS
Percival Puggina
Zero Hora, 16/09/2007


Tomo emprestado o nome da obra de Chordelos de Laclos para abordar, a partir de uma cena que presenciei, esse nó de perigosíssimas ligações que se instalam no país em proporções alarmantes. O Caso Renan é apenas um sintoma – e sintoma menor, saibam – desse conjunto de ligações perigosas.

Hora do pico. Trânsito lento. A minha pista, como de hábito, a mais vagarosa. O motivo rodava e balançava diante dos meus olhos. Era um amontoado de sacos de lixo levados numa carroça. Repleta a caçamba, outros volumes haviam sido pendurados em cascata pelo lado de fora. Ao ultrapassá-lo, para minha surpresa, não vi animal algum. Um homem de meia idade, pequena estatura, maltrapilho e alquebrado, puxava o veículo com a força e o peso do corpo jogado para diante. Sua fisionomia expressava com nitidez o esforço despendido. Ele era o seu próprio cavalo.

Que país é este? Enquanto continuam sendo criados mais e mais empregos de luxo para apadrinhados políticos, enquanto se atribuem tarefas de Estado a indivíduos incompetentes, enquanto os grandes bancos se refestelam, enquanto se esbanjam recursos públicos para nutrir as bases de sustentação de um poder corrupto, enquanto as elites políticas acariciam um modelo institucional podre por natureza, seres humanos se fazem de cavalo. E se fazem de cavalo para coletar lixo. E coletam lixo para produzir tostões que reverterão em migalhas para si e para os seus.

Que imensa contradição, leitor! Quanta podridão endinheirada e quanta integridade miserável! Que testemunho silencioso de adesão ao bem e ao valor do trabalho! É certo, certíssimo, que lá no ambiente onde o carroceiro vive, está presente a sedução do tráfico, do dinheiro fácil, da vida criminosa. Ali agem tantas quadrilhas quanto nos mais altos escalões da República. Mas ele, movido apenas por valores morais, imateriais, e na falta de outras possibilidades, se submete a trabalhar como animal de carga.

Olhem-no, senhores da corte, com seus ternos Armani e seu discursinho meloso em favor dos pobres. Vejam-no, senhores nababos do poder, estadistas de meia-tigela, que se atrevem a governar um país, mas não saberiam gerir honestamente um botequim. Contemplem-no, demagogos de todos os pêlos, aferrados a um modelo político corrupto e corruptor, lambuzados na gastança pública para benefício próprio. Aprendei com ele, usufrutuários das regalias proporcionadas pelos corporativismos! Ali vai um brasileiro exemplar! Eu quero que esse homem seja nome de rua, que tenha busto na Praça dos Três Poderes, que haja uma placa em sua reverência no plenário do Congresso Nacional.

Desigualdades sociais são decorrências inevitáveis das inúmeras diferenças naturais existentes entre os seres humanos, mas a dignidade que todos temos em comum torna inaceitável essa ligação perigosa da miséria absoluta com a absoluta opulência. Ela nasce da perigosa ligação da burrice com o problema, do poder com a incompetência, do refluxo dos que se omitem com a maré dos demagogos. E, principalmente, das perigosíssimas e promíscuas ligações que o presidencialismo estabelece entre Estado, governo e administração. Elas alcançam o apogeu quando controladas por pessoas com discurso de Dom Quixote, discernimento de Rocinante e ambições de Alifanfarrão.

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