domingo, 26 de agosto de 2007

Artigo

NÃO LEIAM EM SALAS DE AULA
Percival Puggina

Nosso sistema de governo, tenho os dedos cansados de escrever, concede aos demagogos uma vantagem que se amplia à medida que avança o processo de urbanização e nos tornamos, cada vez mais, uma sociedade de massa. O presidente da República, eleito e reeleito, é craque no uso de tais facilidades. Há muito tempo integra a corte dos privilegiados. Prosperou longe de toda atividade produtiva e declara um patrimônio que o coloca no topo da pirâmide das classes de renda. Usa ternos Armani e cerca-se de itens de consumo sofisticado. Mas tanto para o mercado eleitoral interno quanto para efeitos externos, Lula é povão. As pessoas olham-no ele e vêem o torneiro-mecânico que há quatro décadas deixou de ser. Como é possível? O mendigo vira príncipe e passa a usufruir tanto dos créditos devidos à realeza quanto da caridade suscitada pela pobreza?

Creio que a explicação desse fenômeno está no poder da linguagem. Dispensado, desde muito cedo, do suor do rosto para o ganho do pão, Lula poderia ter feito o mesmo que fizeram outros homens públicos do país, com origem igualmente pobre, enfrentando dificuldades superiores: cometeram a tolice de estudar, aprenderam a conjugar verbos, queimaram pestanas em leituras, captaram as sutilezas das concordâncias e das regências. Lula, ao contrário, sempre quis distância das salas de aula e dos livros. Percebeu que o linguajar que empregava, num país como o nosso, era um de seus principais patrimônios políticos. Trocá-lo pela língua culta seria sepultar sua carreira.

Ademais, tivesse estudado, teria aplicado a inteligência, que tem como dom natural, para coisas pequeno-burguesas como a busca da verdade e a construção do raciocínio lógico. Lula era muito inteligente para cair nessa. Ao continuar falando como torneiro-mecânico imigrante nordestino ele pavimentou os caminhos da comunicação que o fariam presidente do Brasil.

Quando compreendemos isso, podemos entender o que ele disse no dia 2 de agosto, quando comparou o setor aéreo nacional a um cão com muitos donos, que morre de fome porque ninguém cuida. O leitor destas linhas sabe que o autor da frase é o próprio dono do cão. Compreende que ele é o responsável pelo bicho. Percebe que Lula inverte os lados da relação e se apresenta como se ele fosse o cão e não o dono do cão. Esta não é a primeira, nem a segunda, nem a décima vez que faz a mesma coisa. “Mas isso quem tem que dizer sou eu, não tu!”, penso, sempre que ele aborda erros do governo como se o presidente fosse qualquer outra pessoa.

O fato, porém, é que a estratégia de assinar o próprio alvará de soltura mediante confissões de que foi traído pelo que outros “fizero”, de que não sabia, e de que a administração é um cão sem dono, tem funcionado esplendidamente numa sociedade como a nossa.

Nenhum comentário: