quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

Artigo


Lula inaugura promessas
Villas-Bôas Corrêa


O presidente-candidato, mais candidato do que presidente, cutucado pelas críticas ao desembaraço de ética discutível com que usa e abusa da máquina administrativas e dos privilégios do cargo na caça ao voto, em tempo integral, para o bis do mandato, resolveu baixar do pico da indiferença para uma explicação ao distinto eleitorado.

Entre os muitos palanques, microfones, câmeras e repórteres à sua disposição, decidiu pelo seu programa semanal de rádio. E mandou a brasa do recado curto e fino, no tom didático de quem ensina óbvio aos ignorantes de poucas letras: “O governante tem que visitar (as obras) para ver se está acontecendo aquilo que ele decidiu fazer. Muitas vezes, ele decide mas as coisas demoram mais do que o previsto.”

Ora, o candidato-presidente não é o catedrático mais indicado para puxar as orelhas dos implicantes como seu jeito singular de governar. E menos ainda como fiscal das poucas obras dos três anos de omissões e discursos do seu mandato.

Basta lembrar o constrangedor episódio recente, quando o governo e o presidente foram atropelados pelo desastre no lamaçal esburacado da rede rodoviária em petição de miséria, com longos trechos intransitáveis, pontes de suspeita segurança despencando e a grita indignada de motoristas e usuários de ônibus, caminhões, vans, carros e motos, submetidos ao martírio e ao prejuízo com os veículos enguiçados, pneus em pedaços; horas, dias, semanas perdidas com as cargas ao sol e à chuva.

Na justificativa improvisada, Lula começou pelo auto-elogio dos seus recordes mundiais: “Ninguém neste país conhece melhor a situação precária das estradas do que eu. Percorri mais de 91 mil quilômetros na Caravana da Cidadania.” Baixou a voz grave na fuga à responsabilidade: “As coisas nem sempre saem como a gente imagina”.

Se a vereda da escusa não emplaca, a agenda da viagem de dois dias, ontem iniciada, expõe o abuso reiterado do truque para a utilização do governo na campanha de único candidato livre das restrições legais.

Mais sofisticado com a escora da nova assessoria, o planejamento da agenda obedece às prioridades conferidas pela análise dos dudas da vez. A hora é de centrar o fogo na educação e no cacho de benefícios direcionados para as classes D e E, núcleos habitacionais de pobres e da classe média onde se concentram os seus mais fiéis eleitores.

Como não há obras prontas a inaugurar, o candidato percorre acampamentos de operários em seis estados do Nordeste para dar uma olhada no andamento do programa de extensão das unidades universitárias. Onde não encontrar o que ver, o jeito é inaugurar novas promessas. E a cada parada, um improviso.

Lula passou da conta do tolerável ao colocar o governo a serviço da sua candidatura. Joga com o constrangimento da oposição - zonza na roda para decidir entre o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin e o prefeito da capital, José Serra, o candidato a entrar no ringue para enfrentar o favorito das pesquisas - e com a desculpa de ética de blefe em rodada de pôquer, que não foi ele quem inventou a reeleição e que apenas copia, com a fidelidade de carbono, exatamente o que fez o seu antecessor, o ex-presidente Fernando Henrique, quando emplacou o segundo mandato, na campanha recortada no modelo de encomenda para maior gloria do sociólogo. E que Lula e o PT criticaram aos berros, até a rouquidão.

A inversão deixa ambos pendurados no poleiro da incoerência. E do mais impudente jogo com as regras frouxas do descaramento. O Congresso leva o cascudo severo pela passividade com que testemunha a desmoralização crescente do processo eleitoral e não dedica algumas horas da madraçaria da semana de dois dias úteis para a urgente, a inadiável reforma política, sempre adiada, com remendos de última hora que não disfarçam o monstrengo, com mais rugas do que roqueiro e menos fôlego e vitalidade do que o jovem sexagenário Mick Jagger.

Estamos na pré-campanha de um só candidato, que junta votos para arrancar na frente, com vários corpos de vantagem. Primazia de governo com um candidato natural e soberano, maior do que o Partido dos Trabalhadores e com uma cesta de ofertas para distribuir aos aliados da sua conveniência.

Se quem sai na frente nem sempre rompe a fita de chegada, é evidente que Lula recuperou boa parte dos votos que se dispersaram com o escândalo da corrupção, como sempre, o maior da história deste país.

Depois do Carnaval, o espetáculo recomeça, com o elenco voltando ao picadeiro com o rosto rebocado pelas tintas que disfarçam a mancha encarnada da vergonha.

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