quarta-feira, 27 de setembro de 2006

A FÁBULA DOS GATOS

Um fazendeiro plantava milho e o armazenava no paiol da sua fazenda. Com o milho, o fazendeiro alimentava as galinhas, os cavalos, as vacas e todos os outros bichos que criava na fazenda. Os bichos da fazenda, por sua vez, garantiam ao fazendeiro o seu sustento.

Os ratos insistiam em roubar o milho armazenado no paiol. Quem cuidava do paiol era um cachorro. Um cão preto e grande que os matava e os afugentava de forma muito eficiente. Quem cuidava do paiol antes do cachorro cuidar do paiol era o pai do cachorro e, antes do pai do cachorro, quem cuidava do paiol era o avô do cachorro. Já era uma tradição na fazenda. E sempre foi assim, a família do cachorro cuidando do paiol, e não deixando que os ratos comessem todo o milho. Era um trabalho duro: os ratos não acabavam nunca e, chovesse ou fizesse sol, lá estavam para roubar uma espiga aqui, outra ali. O cachorro não tinha folga e para fazer frente à rapidez dos ratos, mantinha os músculos em forma e os reflexos ligeiros. Aida bem, para todos menos para os ratos, que o cachorro adorava o seu trabalho e a ele se dedicava integralmente. Afinal, se não fosse por ele, os ratos já teriam há muito tempo comido todo o milho e acabado com a comida dos demais bichos.

Em reconhecimento pelo seu trabalho ancestral, a bicharada elegeu o cachorro o presidente da fazenda. É claro que o mando do presidente não era ditatorial, haja visto que foi eleito e não imposto, e discussões surgiam, havia discussões e vez por outra alguma insatisfação aparecia, como é comum e até salutar num regime representativo, mesmo que seja numa bucólica república rural de bichos numa fazenda. Mas, de uma coisa todos podiam ter certeza: quem trabalhasse, ganhava o seu quinhão e havia sempre muito milho para todos os trabalhadores.

Num dia azíago, apareceu na fazenda um gato. Um gato magro e bigodudo. Tão bigodudo que, tivessem barba os gatos, esse poderia ser um gato barbudo.

O cachorro, como todo cachorro que se preza, ciente da sua função e do valor do seu trabalho, latiu para o gato, quis que o gato fosse embora, pois logo pressentiu que aquele bicho de ar debochado, malicioso, sem nenhuma propensão para o trabalho, não poderia ser grande coisa e cheirava a elemento desagregador da paz e da produtividade na fazenda.

O fazendeiro não entendeu quando o cachorro tentou lhe explicar o fato, e o gato foi ficando, foi ficando, foi ficando...

O gato, que não trabalhava (que, aliás, nunca tinha trabalhado), tinha bastante tempo para conversar com os outros bichos da fazenda. E chegava de mansinho junto da bicharada, magrinho, fraquinho, e começava a miar e a ronronar de forma simpática a muitos. Os outros bichos, muito bonzinhos e crédulos, paravam para escutar o que o gato tinha para dizer:

- Miau, miau, ai, ai. O que vai ser de mim. Não existe lugar nesta fazenda para um bichano como eu, tão injustiçado, tão fraquinho! Veja, não posso trabalhar, o sistema é tão injusto! E ainda mais porque eu perdi parte de minha pata dianteira esquerda num acidente numa moenda de cana... Só por que não nasci forte como o senhor, Sr. Cavalo, só por que não posso dar leite como a Dona Vaca, não posso trabalhar! O Sr. Cachorro, o dono do poder, não avalia essas contingências históricas e me mantém mergulhado nessa penúria...

- Mas, Seu Gato, e aquele trabalho que lhe ofereceram na casa, como guardião da dispensa? Perguntou o cavalo.

- Não aceitei, Seu Cavalo. Na verdade, prefiro continuar minha luta por condições mais dignas de trabalho e pelos pobres e miseráveis da fazenda! No fim, depois de tanta ladainha, os bichos começaram a acreditar no gato, por acharem que o bichano barbudo era igual a eles e que falava a língua deles. Começaram a sentir pena do gato.

E o gato, que se dizia injustiçado, que se fazia passar por vítima, que se dizia explorado pelo sistema e, principalmente, pelo cachorro (embora o dono da fazenda já houvesse lhe atribuído uma quota de milho como uma espécie de aposentadoria por invalidez), continuava a choramingar a sua desdita.

Conquistando a simpatia dos bichos, o gato fez com que os bichos acreditassem que ele, tão sofrido, tão maltratado, iria garantir a todos melhores condições de vida. Vivia dizendo a todos que mantivessem a sua esperança em dias melhores, que não tivessem medo de mudar e que a esperança deveria derrotar o medo e que todos seriam compensados no dia em que ele fosse eleito para substituir o cachorro.

Tanto miou, tanto fez, que um dia os bichos revoltados com a situação de absoluta miserabilidade do gato e com a alegada injustiça social reinante na fazenda, resolveram elege-lo para suceder o cachorro.

E de nada adiantou o cachorro insistir no aviso de que cuidar do paiol não era para qualquer um. Que ele havia treinado muito para assumir essa função. Que os ratos não eram mole, e não dariam trégua assim tão fácil.

Afastaram o cachorro e, por grande margem de votos, colocaram no seu lugar o gato barbudo. Os bichos sabiam que o gato nunca havia trabalhado antes e que não estava minimamente preparado para tomar conta do paiol de milho. Mas acreditaram que o gato, por ter sofrido mais do que ninguém com a política do cachorro, faria uma administração do paiol mais voltada para os pobres e com moralidade, pois ele se dizia um campeão da ética.

No começo, tudo foi festa: no lombo de Seu Cavalo, viajava o gato para outros sítios e fazendas, falando sobre a sua conquista. Contava aos outros bichos que agora a fazenda vivia uma nova realidade. Tanta era a festa, tanta era a euforia, tanta era a esperança, que os bichos não perceberam que mais e mais gatos não paravam de chegar. Todos com seus bigodes imensos servindo como sinal de identificação... Gatos de todos os jeitos. Gatos vindos de todas as partes. Gatos, que em comum com o gato-presidente, nunca tinham trabalhado na vida. Gatos vagabundos.

E gato-presidente, que curiosamente chamava todos os demais gatos de "cumpanheros", precisava arranjar uma função para essa gataiada. Não para faze-los trabalhar, mas para remunerá-los e aparelhar a administração da fazenda com elementos de sua confiança, pois tinha um plano para se eternizar nela.

Então, um dia, quando Seu Cavalo apareceu para puxar o arado, percebeu que, no seu lugar, já um bando de gatos ocupava os arreios. E Dona Vaca, que produzia o melhor leite da região, foi expulsa da estrebaria pelos
companheiros do gato-presidente. E as galinhas, no galinheiro não moravam mais: nos poleiros, gatos e mais gatos ocupavam o espaço e fingiam estar botando ovos.

E o gato-presidente remunerava prodigamente todos os seus companheiros. Muitos, mesmo não sendo gatos, passaram a ser companheiros quando o gato-presidente e seus assessores diretos passaram a remunerá-los mensalmente para que fizessem parte da sua base aliada.

Afinal, um trabalho 'em prol da coletividade' seria o que todos desempenhavam...Como era de se esperar, o gato-presidente (nunca havia trabalhado) não conseguia cuidar do paiol. Os ratos logo perceberam a situação: atacavam, como nunca haviam feito, o milho da fazenda.

Tão complicada ficou a situação que o gato-presidente precisou conversar com o seu conselheiro. Um gato de óculos, que miava de um jeito esquisito, puxando demais os "erres":

- Miarr, presidente. A coisa tá feia. Em nome da governabilidade da fazenda, temos que nos aliar aos rrratos!

- 'Cumpanhero', os fins justifica os meios! Devemos passar aos demais bichos uma imagem de ordem e de tranqüilidade! E os gatos fizeram um pacto com os ratos: os ratos fingiam que não roubavam o milho, os gatos fingiam que caçavam os ratos.

Dessa forma, a bicharada menos informada - que infelizmente era a maioria - acreditava que os ratos estavam sendo combatidos, e os ratos, que por baixo do pano recebiam suas espiguinhas, mantinham os gatos no poder.

Entretanto, o milho foi acabando. E os bichos, que haviam acreditado na conversa do gato-presidente, com fome, começaram a ficar insatisfeitos. E foram todos reclamar com o gato-presidente.

Tarde demais. O paiol já estava infestado de ratos, ratos por toda parte, ratos em tudo. Ratos e gatos, gordos, barbudos, aproveitando tranqüilamente o que havia sobrado de milho no paiol enquanto o resto da bicharada, os bichos que sabiam trabalhar, que davam duro, ficaram sem comida.

Sem comida, e traídos que se sentiram, perderam o maior tesouro de todos: a esperança de dias melhores.
Foram vítimas do maior estelionato eleitoral jamais ocorrido naquela fazenda. O fazendeiro, ao constatar a destruição do paiol e a mortalidade alta dos bichos por fome e inanição, achou que a sua propriedade não era mais lucrativa e vendeu-a para uma multinacional. Mesmo porque já havia, à beira da estrada que lhe dava acesso, um bando de terroristas malfeitores acampados e prontos para invadir a sua propriedade, a pedido, pasmem, do próprio gato-presidente.

MORAL DA ESTÓRIA: "ALERTA AOS FAZENDEIROS: EXPULSEM TODOS OS GATOS DE SUAS PROPRIEDADES E DÊEM PRIORIDADE AOS CACHORROS, ENQUANTO É TEMPO".

Autor: Aristides Athayde, advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba. Mestre pela Northwestern University, Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), Membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce.

(COM PEQUENAS MODIFICAÇÕES)
Enviada por: Doalcei Marcos da Silveira

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