terça-feira, 24 de janeiro de 2006

Ponto de vista - Revista Veja

As elites e o povão
Lya Luft

É cansativo, é irritante, isso de falar em elites e povão, como se só o chamado povão fosse honesto e merecedor de confiança e tudo que se liga à "elite" significasse o pior quanto à moral, ao valor e à confiabilidade.

É mal-intencionado dizer que só a elite é saudável, educada, merecedora das boas coisas da vida e o povão é sujo, grosseiro e não vai melhorar nunca.

Precisamos ter, repito uma vez ainda, cuidado com as palavras, que podem ser perigosas armadilhas. Isso vale para nós, colunistas, para nossos críticos bem ou mal-intencionados, para políticos, para governantes, para cada um de nós em particular.

E, afinal, o que é essa "elite"? Quem a constitui? Parece que existem várias.

Elite social – Nada mais triste do que ler: "Fulana de Tal, socialite". Tem profissão? Tem família? Faz alguma coisa da vida? Não, ela é socialite. O marido, ou o filho, ou o companheiro dessa fina dama seria o quê? Um socialite, também? Singularmente ainda não vi o termo usado no masculino. Talvez porque na nossa utopia os homens sempre têm profissão e ganham o dinheiro, isto é, são úteis, enquanto as mulheres ornamentam seu lado público.

Elite intelectual – Dessa, já gostei mais. Porém, cuidado: o grau de intelectualidade não reside na quantidade de diplomas, alguns fajutos, adquiridos no exterior em universidades com nomes pomposos. O intelectual de primeira é o que de verdade pensa, lê, estuda, escreve, pesquisa e atua. Cultiva a simplicidade e detesta a arrogância, companheira da inteligência limitada.

Elite financeira – Bem, pode ser impressionante, porém cansei de ver gente endinheirada palitando os dentes à mesa ou tratando mal garçons ou empregados.

Elite artística – É coisa para pensar. Mas traz seus perigos, porque os de sucesso correm o risco fatal de ser mordidos pela mosca azul e botar aquela máscara de nariz empinado; os de menos sucesso estão sob ameaça de vender a alma ao diabo do ressentimento.

Elite política – Difícil de comentar, aqueles em quem a gente ainda votaria não ocupam os dedos todos da minha mão direita. Pois essa seria uma seleção de homens íntegros, querendo o bem de todos: não só dos afortunados, nem só dos mais pobres.

Talvez elite verdadeira fosse a dos bem informados e instruídos, não importa em que grau, não importam dinheiro nem sofisticação. Um povo pouco informado acredita no primeiro demagogo que aparece, engole suas mentiras como pílulas salvadoras e, por cegueira ou por carência, segue o caminho de seu próprio infortúnio.

Seria melhor largar essa bobagem de elite versus povão e pensar em habitantes deste planeta e deste país. Todos merecendo melhor cuidado com a saúde, melhores escolas e universidades, melhores condições de vida, melhor salário, melhores estradas, lugares de lazer mais bem-cuidados, mais tranqüilos e seguros, menos impostos, menos mentiras. Mais oportunidades, mais sinceridade, mais vida. Melhor uso das palavras. Mais respeito pela inteligência comum e pelo bom senso.

É demasiado fácil enganar o povo apontando o dedo para alguns que descobrem verdades ocultíssimas e acusar para não ser acusado: "Olhaí, é coisa das elites".

Então, velhíssima fórmula tão pouco aplicada, comecemos pela educação. Mas não venham com a empulhação quanto aos analfabetos a menos no país. Alfabetizado não é quem aprendeu a assinar o nome: é quem antes leu e compreendeu aquilo que vai assinar, pois, se optar errado, a exploração de sua ignorância vai pesar sobre seus ombros por mais um longo tempo de altos juros.

Mais cuidado com palavras, pois elas podem se transformar, de pedras preciosas, em testemunho de ignorância ou má vontade, ou ainda em traiçoeiros punhais.
Lya Luft é escritora

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