sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

Artigo



O HAITI É AQUI,
por Xico Vargas, NoMínimo

Abstraindo-se os nomes dos bairros daria para apostar que o coronel Leônidas falava das dificuldades que havia encontrado para entrar em algumas das incontáveis favelas do Rio de Janeiro dominadas por facções criminosas. Uma sucessão de fotos exibia construções vandalizadas, carcaças de automóveis, esgoto a céu aberto, lixo espalhado pelas vielas, comércio fechado. Sem tirar nem pôr, tudo o que o carioca encontra diariamente ao vivo ou pelos jornais. Com duas importantes diferenças. Primeiro, à medida que o relato avança percebe-se que o quadro é muito pior e, depois, ao contrário da polícia do Rio, o que Leônidas tem para contar é uma história de sucesso. Embora não seja o Rio, até o mapa projetado numa parede branca permite que, de longe, se adivinhe a favela da Maré, do outro lado os edifícios da Vila do João, linhas à frente a favela do Muquiço, mais adiante o morro do Querosene. Ajustada a bússola, no entanto, descobre-se que aquele cenário corresponde a lugar muito mais pobre que o Rio de Janeiro. Se parece tão igual é só porque a miséria e o crime guardam contornos muito próximos. O que Leônidas, um militar grisalho, magro e desempenado, descreve com bom humor é a chegada a Porto Príncipe, capital do Haiti, do contingente de 1.200 militares brasileiros que integrou a força da ONU encarregada de devolver a paz desaparecida desde a renúncia de Jean-Bertrand Aristide, em 2004. A cidade que emerge do relato do coronel é lugar tenebroso. Uma capital com bairros inteiros – como Bel Air ou Cité Soleil – sem água ou eletricidade, escolas e postos de saúde fechados, fossos profundos escavados na largura das ruas desertas, para impedir a entrada dos soldados. Seis grandes quadrilhas dominam áreas nas quais o amanhecer sempre revela cadáveres nas sarjetas. São o resultado de assassinatos, assaltos, embates internos ou entre quadrilhas durante a madrugada. O principal banco do Haiti e a sede do governo estão sitiados. No meio dessa lambança desembarcaram os brasileiros, para falar de paz a pessoas que acordavam sem saber se teriam o que comer ao longo do dia. Cobriram os fossos, recolheram o lixo, tiraram 59 carcaças de veículos das ruas, entraram nas zonas conflagradas, ofereceram assistência médica e social à população e começaram a colecionar números: libertaram 12 seqüestrados, detiveram 482 pessoas e prenderam 238, sofreram 111 ataques e desarticularam as seis gangues em atividade. “A tropa do Rio tinha experiência da vida nas comunidades”, explica o coronel sobre o destacado desempenho de alguns soldados nesse trabalho.À medida que penetraram nos ninhos da bandidagem os soldados do Batalhão Haiti foram deixando para trás crianças de volta às ruas, comércio reaberto, escolas recebendo alunos de novo e, claro, peladas de futebol até em ladeiras, em quadras pintadas no chão. “No início, a polícia pedia a nossa proteção para entrar nesses locais”, revela o também coronel Emílio, para explicar que fizeram centenas de prisões sem tirar os olhos da bíblia dos direitos humanos. Tanto respeito chegou a levar ao xadrez o segundo homem na hierarquia da polícia haitiana, como a do Rio, pouco afeita a esse tipo de atenção.Em seis meses no Haiti os brasileiros devolveram Porto Príncipe à relação das cidades habitáveis e foram festejados como heróis. Leônidas, um capitão (foto) homônimo do coronel, emociona-se quando lembra que as crianças desenhavam seu rosto nas camisetas ou que os moradores de Bel Air produziram um abaixo-assinado para pedir sua permanência na cidade. O embaixador brasileiro no Haiti, Paulo Cordeiro de Andrade Pinto, precisou desmanchar-se em mesuras para explicar ao prefeito da capital não era possível manter o militar mais tempo longe de casa. Pudera, o capitão embrenhava-se com meia dúzia de comandados pelos becos dos bairros conflagrados atrás de seqüestrados. Numa dessas, arrancou do cativeiro a mulher de um médico conhecido na cidade. O Haiti, como diria Caetano, é aqui, ainda que nossa miséria seja menor. Só não temos o batalhão que lá botou ordem na casa. Resta, então, aos brasileiros ruminar o absurdo. O Brasil é capaz de resgatar a capital de um país para o império da lei, mas a segurança da segunda cidade brasileira está entregue a uma polícia que mais achaca e mata do que prende, comandada por um casal que acha que todos os males do Rio vêm de fora. Tem certa razão. O atual, por exemplo, veio de Campos.

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