sexta-feira, 30 de junho de 2006

Artigo

Mona Lisa desmascarada
Percival Puggina


O polêmico assunto retornou ao debate, há algumas semanas, em virtude da
notícia de mais um bebê encontrado vivo em lata de lixo. A líder feminista
subiu nas tamancas e brandiu o dedo em defesa dos direitos da mulher sobre o
próprio corpo (como se sabe, esse é um eufemismo para sustentar o direito de
matar e remover do útero o corpo de um outro ser humano, o indefeso feto ali
albergado).

Apontei a contradição: "A senhora incorre num paradoxo. Não lhe parece
estranho lamentar um bebê jogado vivo no lixo da calçada e, simultaneamente,
pleitear que esse mesmo bebê, semanas ou dias antes, possa ser morto e
lançado na lixeira de um hospital?" A única resposta que obtive foi "não é
bem assim", seguida por sorriso de impenetrável significado.

Toda defesa do aborto se faz com artifícios retóricos que só servem para
tentar justificar o injustificável e que não resistem a uma análise
racional. Aliás, Schopenhauer, em seu ensaio sobre como vencer um debate sem
ter razão aponta, entre os estratagemas que podem conduzir a esse resultado,
o desvio de foco. Ficou sem argumento? Mude de assunto. Foi o que a médica
tratou de fazer. Apanhada em contradição, saiu-se com esta: "A Igreja
Católica é a grande responsável por não termos ainda legalizado o aborto no
Brasil. No entanto, esse não é um assunto religioso. Ademais, existe no
Brasil a
separação entre Igreja e Estado. O senhor sabia disso?".

Sim, eu sabia. E também sabia que o argumento continha outra das espertezas
catalogadas por Schopenhauer. Ela consiste em retirar conclusões falsas de
premissas que todos sabem ser verdadeiras. Como as pessoas concordarão com
as premissas, ficarão inclinadas a concordar com a conclusão. A frase da
médica era um exemplo disso. De fato, a Igreja é contra o aborto. De fato,
existe a separação entre Igreja e Estado. Mas não se pode deduzir como
conseqüência dessas duas
afirmações que o aborto deva ser legalizado.

Foi fácil desmascarar a artimanha. "Segundo esse seu raciocínio, doutora, a
tortura deveria ser legalizada no Brasil, porque a Igreja também é contra a
tortura. Aliás, a lista de crimes aos quais a Igreja se opõe é mais extensa
do que o Código Penal. Talvez conviesse rasgá-lo". E extraí outro sorriso
daqueles, tipo Mona Lisa desmascarada.

Continuo à espera de que me apresentem um único argumento favorável ao
aborto que escape ao denominador comum da retórica desonesta. Aqueles que os
afirmam contam com a ingenuidade dos que os ouvem.

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