segunda-feira, 29 de maio de 2006

Artigo


LUTEM, COVARDES!
por Reinaldo Azevedo (Primeira Leitura)
24.05


Vocês já contaram com a possibilidade de esse troço – refiro-me ao Brasil mesmo – não ter saída? Pensem um pouco: quem disse que tem de ter? Há coisas que não dão certo, que falham. Lembro-me de Bill Gates testando ao vivo, na TV, a versão 98 do Windows. Pimba! Travou a máquina. Se até o que obedece a um rigoroso planejamento pode “dar pau”, onde é que está escrito que um bom futuro espera o “adormecido em berço esplêndido”, com toda a sua rotina de improvisos e tolices? E se o país não estiver dormindo, mas morto?

Ok, como naquele poema do Drummond, entretanto lutamos, mal rompe a manhã. A minha manhã começa um pouco mais tarde, mas fico aqui a cuidar do mundo enquanto você dorme, leitor amigo. Mas que cansa, cansa. Algumas épocas são particularmente sensíveis à idiotia. Vivemos um desses períodos. Ou Lula não seria presidente da República, com grande chance de ser reeleito.

No Bananão, até resenha de livro já rende direito de resposta. Em breve, teremos de banir a crítica literária, política ou ideológica ou só exercê-la com um bom advogado. No dia em que Evo Morales disse que o Brasil ganhou o Acre em troca de um cavalo, observei aqui que se tratava de uma mentira, mas sugeri devolver o Estado aos bolivianos e pegar de volta a Petrobras e o... cavalo. Era uma brincadeira, claro. Embora eu creia que me seja facultado o direito de achar que a Bolívia mereça ter, entre os seus, os irmãos Viana (Jorge e Tião) e Marina Silva. Os bolivianos vão ver o que é bom pra tosse.

Junto com a vergonha na cara, o país está perdendo também o senso de humor. Espero que os bolivianos não tomem essa minha sugestão de lhes dar a trinca de presente como um ato hostil. No Manhattan Conection, Diogo Mainardi fez brincadeira semelhante. Parece que uma deputada propôs uma ação popular contra ele e quer sei lá quanto de indenização para cada acreano que se julgar ofendido. Engraçado isso! Podem falar mal de São Paulo à vontade. Duvido que Diogo dê a mínima. Ou qualquer paulista. A gente até ajuda a malhar. Eu não sei por que um acreano tem de gostar mais do Acre do que um paulista de São Paulo. Aliás, não tenho a menor idéia do que significa “ser paulista”.

O que será? A gente deveria andar com uma viola nas costas, chapéu de palha e fumo de corda no bolso? Deveríamos ter no paletó um broche com a torre da Fiesp em metal dourado? Andaríamos com uma camiseta dos movimentos de rap da periferia? Reivindicaríamos a glória de termos dado à luz Marcola e o PCC? Deveríamos fazer como Mário de Andrade e ficar fazendo poesia sobre o rio Tietê? Exaltaríamos, mais antigos, os bugres bandeirantes, de pé no chão e chicote na mão? Que diabo é ser paulista? Não sei. Mas os acreanos ofendidos devem saber muito bem por que é tão doce e decoroso ser do Acre, razão que tornaria o Estado imune até mesmo a uma piada.

Até na minha Dois Córregos natal, a pequenina e valente, podem descer a língua. Ainda que o rio da minha aldeia fosse mais bacana, ficaria de bico calado por puro constrangimento. Quando eu era moleque e comunista, já era internacionalista. Se algum acreano sugerir que São Paulo deva ser separado do Brasil, conta com o meu integral apoio. Existe uma certa cultura antipaulista no país. Alinho-me com os separatistas “brasileiros” contra os “paulistas”. E isso aí, gente, fora com São Paulo!

Em breve, carioca que fizer piada sobre Niterói terá de pagar uma pesada indenização. Espero o dia em que uma associação de restaurantes de comida japonesa queira me processar porque acho antropologicamente impossível que um ocidental possa gostar de peixe cru com algas marinhas e nabo ralado. Ou, então, os admiradores do Bolero, de Ravel, se darão o direito de praticar atentados contra mim — espero, ao menos, que sejam suicidas — porque acho aquele troço insuportável.

Procure ler, leitor amigo, o livro A Cultura da Reclamação, de Robert Hughes. Estamos claramente mimetizando o “reivindicacionismo” de país rico, onde vicejou o politicamente correto, já em decadência. Chegamos tarde também nisso. Só que não temos a grana para arcar ou com ações afirmativas ou com um bom debate, com todas as frentes da batalha devidamente organizadas. Resultado: há um certo fascismo larvar em curso. Qualquer um que se declara destituído de algo a que julga ter direito se organiza para tomar na porrada o que acha que lhe pertence. Uma suposta legitimidade histórica é tomada como um novo direito divino.

Leiam o noticiário do site e os textos de Rui Nogueira e Liliana Pinheiro sobre, respectivamente, a questão da segurança pública e o depoimento de Delúbio Soares. Acrescente-se a isso o comportamento das oposições até aqui — com as exceções honrosas de sempre, é claro. Admitamos: as chances de isso ter futuro são muito reduzidas. Num papo ao telefone, hoje, com o professor Roberto Romano — afinal, sou o recluso do crânio rachado —, ele citou um amigo comentando a fala de uma terceira pessoa: “O que ele diz [esta terceira pessoa] não é nem certo nem errado, nem razoável nem absurdo; é apenas admirável”.

É isso: vivemos dias absolutamente “admiráveis”. Tão admiráveis, que Márcio Thomaz Bastos vai à casa de um senador da República, da oposição!, para manter um encontro, definido como “institucional” pelo ministro Tarso Genro, com Daniel Dantas. Se o Barão de Münchausen aparecer na minha frente segurando a própria cabeça, direi a ele um burocrático “bom dia!” e seguirei adiante. Tudo absolutamente corriqueiro, tudo absolutamente normal.

Lula recebee, na terça passada, lideranças evangélicas e, segundo entendi, vê a mão de Deus no seu governo. Também tentou divisar a ação divina no fato de um imigrante de Garanhuns ter chegado à Presidência da República. Ai, ai, leitor. Você sabe qual é a crítica fácil, não é? Messianismo. Fácil e errada. Lula não é um messiânico desses que brotam com facilidade na América Latina. Os petistas têm razão em dizer que sua política econômica desautoriza tal abordagem.

Seu populismo é mais refinado e já fez pós-graduação na PUC do Rio. Lula acreditar que tanto ele próprio como o seu governo são coisa de Deus me parece até razoável, compatível com a sua política e com seu nível mental. Que não topem com uma ação organizada e consistente contra esse absurdo, bem, o surrealismo reside aí. Lula é só um dado da realidade corriqueira de países atrasados.

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