segunda-feira, 24 de julho de 2006

Artigo

ÉTICA DA MALANDRAGEM
Maria Lucia Victor Barbosa, socióloga

A Copa do Mundo acabou mais cedo para o Brasil. Perdido o jogo para os franceses parecia que o mundo se findara entre gritos, lamentações e lágrimas. Nem os ataques do PCC e sua matança de agentes penitenciários, nem os mensalões com os quais o governo do PT agraciou parlamentares que venderam seu voto e traíram o povo por trinta moedas ou bem mais, nem o peso dos impostos que levam 40% do que é produzido por todos nós, nem os escândalos que enodoaram a República de forma vexatória, nem a corrupção galopante que faria corar qualquer bandido de outras terras produziram a hecatombe de sentimentos que se viu na derrota futebolística. Patriotismo aqui é só no futebol. Bandeira brasileira tremula apenas na batalha campal travada pelos pés de nossos jogadores. Do verde-amarelo se foi ao luto. Do riso fez-se o pranto. Da esperança, desencanto.

O jeito foi mudar de país. Como o técnico de Portugal era o brasileiro Felipão, nos tornamos todos portugueses desde criancinhas. Sublimamos a própria derrota para poder suportá-la transferindo para outro time nosso orgulho nacional que só se externa em Copas do Mundo. E como se torceu pela antiga metrópole. Ao final da partida outra dolorosa frustração: Portugal também perdeu. Inominável dor. Fomos derrotados pela segunda vez.

Se torcer por nossos jogadores quando defrontados com os de outros países é mais que natural, se o entusiasmo pelo esporte é sadio, temos, porém, um exagero que raia ao fanatismo quando se trata de futebol. Apenas levamos a sério carnaval e futebol enquanto somos extremamente displicentes com assuntos políticos. Nosso voto é fútil. Nosso empenho em ter um projeto comum de país é inexistente, exceto quando se trata de partidas mundiais de nosso adorado esporte nacional. E não basta dizer que fomos intoxicados pelo invasivo martelar da TV a mostrar dia e noite os acontecimentos ligados à Copa. Isso funciona, e muito, mas não funcionaria se não fossemos tão pobres em valores. Tão parcos em heróis de verdade, tendo que nos satisfazer com jogadores de futebol transformados em ídolos. Faltam tradições mais sólidas a esse país grande que ainda não se transformou num grande país porque não soubemos construí-lo grandioso.

Em meu primeiro livro, “O Voto da Pobreza e a Pobreza do Voto – A ética da malandragem”, editado por Jorge Zahar no já longínquo ano de 1988, cheguei a algumas conclusões que, infelizmente, não mudo agora, e que também servem para explicar, entre outras coisas, porque apenas o futebol nos empolga tanto ou porque elegemos um presidente dotado da mais impressionante ética da malandragem. Por que admiramos sua esperteza. Porque rimos quando ele nos passa para trás ou nos manda levantar o traseiro. Porque muitos de nós querem reelegê-lo. Porque adoramos suas mentiras, suas piadas grosseiras, sua incapacidade de falar corretamente. Na ilusão de que ele é um homem comum e pobre, a maioria dos brasileiros põe Lula lá pensando que vai à forra contra os ricos, o capitalismo indecente, os porcos ianques, a nefanda goblalização e um tal de neoliberalimo. E para melhor nos entender conclui naquele meu livro, entre outras coisas, que:

Na verdade todos nós compactuamos com o sistema dentro do qual a massa de miséria sofre as mesmas influências passadas e presentes que nunca fizeram de nós um “povo guerreiro”. Os mais pobres como os mais abastados, geralmente aspiram a partir de suas necessidades peculiares e com a mesma voracidade nunca saciada, facilidades preferivelmente alcançadas por esperteza ou doação de alguma autoridade paternal. É que não temos de modo geral o sentido de conquista no tocante ao esforço pessoal, não nos faltando, porém, a capacidade predatória. Não sabemos na maior parte das vezes exercer o poder, mas tão-somente nos beneficiar do poder. Não temos senso das medidas, sendo capazes de passar de um extremo ao outro sem avaliar as conseqüências de nossos atos. Afetamos cordialidade, mas sabemos ser violentos. Imitamos com facilidade, nos deixando levar por modismos. Simulamos democracia, mas somos autoritários. Preferimos sempre culpar alguém ou algo para nos eximirmos de nossas responsabilidades. Abusamos da liberdade em invés de usufruí-la. Convivemos com um Estado corrupto e inepto por nosso comodismo.

Naturalmente temos exceções. Gente humilde que é trabalhadora e honesta. Lideranças que se agigantam na tentativa de romper com o ranço da mentalidade antiprogressista. Elites intelectuais. Temos nossas “aristocracias” significando arisotoi: os melhores. Mas serão essas minorias excelentes capazes de preencher a lacuna entre a classe dirigente e a massa, no sentido de romper com a mentalidade do atraso? De ultrapassar a ética malandragem, segundo a qual quem não rouba é burro, e bom governante é o que rouba, mas faz? Eis questão.

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